terça-feira, junho 19, 2012

Diálogo com uma empreguete

Todo dia acordo cedo,
Moro longe do emprego 
Quando volto do serviço quero o meu sofá

Eu também acordo cedo, às vezes saio de casa 04 da manhã, passo o dia inteiro correndo de um lado pro outro, volto às duas do dia seguinte, e ainda tenho que madrugar para mais uma jornada. Mas é a profissão que tenho (e nem foi a que escolhi, mas isso é outra postagem), e se não tenho outra, vamos ser felizes assim mesmo.

Tá sempre cheia a condução 
Eu passo pano, encero chão 
A outra vê defeito até onde não há


É, minha querida, ônibus cheio é uma praga, mesmo. E eu, que depois da enésima tentativa de assalto ando tensíssima, de olho em cada gente esquisita que passa pela catraca? Se me parecer nervoso (a) demais, olhando muito para os lados, desço no ponto seguinte. Gasto o dobro pra chegar em casa, mas é melhor do que levarem meu celular querido. Sobre passar pano, encerar o chão... Veja bem: não são parte das atividades inerentes ao seu cargo? No meu trabalho, subir dunas correndo, descer esbaforida, não ter hora de almoço, não ter domingo, feriado, tudo isso faz parte do rol de atribuições. E a "outra", que suponho ser sua contratante, ver defeito em tudo, ora, quantos chefes não são assim, em diversas áreas?

 Queria ver madame aqui no meu lugar 
Eu ia rir de me acabar 
Só vendo a patroinha aqui no meu lugar 
Botando a roupa pra quarar

Taí o equívoco-mor da história toda: eu sou contratada para fazer um trabalho que os meus chefes não podem, não querem ou não tem tempo de fazer. Por que esse rancor de "queria ver você no meu lugar"? Como se colocar a roupa para quarar fosse tão desonroso que pudesse servir de vingança contra um superior hierárquico pentelho. Não é, não. NÃO EXISTE TRABALHO INDIGNO! Você tem um contrato para executar uma tarefa que eu não posso ou quero fazer. Tirar a mesa, lavar a louça, limpar o chão, nada disso reduz o valor de ninguém, do mesmo jeito que servir café, varrer a rua antes de um take ou almoçar sentada no meio fio não me diminuem.

 É muita vitimização, é falta de respeito por si e pelo seu trabalho. Essa postura subserviente revoltada não te leva a lugar nenhum, cara empreguete. O que te faz subir um degrau atrás do outro é a competência com a qual você exerce a sua profissão. Isso vai te notabilizar, isso vai te garantir a sensação deliciosa de dever cumprido. Creia-me: no dia em que você descobrir o valor que você tem, a vida vai ser muuuuito mais camarada contigo.

Minha colega quis botar 
Aplique no cabelo dela, 
Gastou um extra que era da parcela

 Bom, cada um sabe das suas finanças, né? Tenho pavor de fazer dívida, nem cartão de crédito tenho, mas eu escolhi assim. Deixo de ter as coisas, mas durmo tãaaaao bem...

Levo vida de empreguete, eu pego às sete 
Fim de semana é salto alto e ver no que vai dar 
Um dia compro apartamento e viro socialite 
Toda boa, vou com meu ficante viajar

Torço muito por isso, adoro gente que vai para onde quer, gente que conquista seus objetivos, sua casa, seus sonhos. Mas vamos lá: se você vai viajar com seu peguete, virar socialite, pouco tempo vai sobrar para os afazeres domésticos. E aí, empreguete, que tipo de "outra" você vai ser?

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Andei incomodada com a letra dessa música desde que ouvi minha filha cantando. Hoje, só para confirmar os meus temores, ouvi e li a música inteira. É ruim como eu havia imaginado. Não: é pior.

A música aparentemente engraçadinha cria uma trincheira na já combalida relação de patrão vs empregada. O conteúdo é tão rancoroso que assusta. As empregadas se colocam numa posição subaterna, inferior, e não se engane: é cantarolando sem preocupações que a música chiclete gruda e cumpre sua finalidade.

Ah, Daniela, você não assiste à novela, então não pode descontextualizar a letra da música do enredo do folhetim. Não assisto mesmo, acho um porre, yadda, yadda. Só que a minha filha também não assiste, e a menos que eu a amarre no meio da floresta, impossível poupá-la do contato com a cultura pop. E é essa mensagem preconceituosa que ela recebe, pinçada do contexto da novela, raivoso, vingativo.

Não é um texto contra a Globo, contra a novela, contra a massificação dos produtos de mídia, nem nada alusivo a lavagem cerebral, estupidificação dos sentidos ou quaisquer dessas baboseiras de um mundo haribô utópico. Não. É o choque de ver a manutenção de um ódio ancestral, popularizado num muito bem sucedido clip. É muita gente cantando, curtindo, e internalizando uma mensagem daninha, e não vi NINGUÉM levantando a lebre. Em não tendo nada pra fazer, trago eu minhas angústias à baila.

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 E bem vindo de volta ao Shaggapress!

3 comentários:

Reinofy Duarte disse...

Trago.

Anônimo disse...

Pois é, pois é, pois é...
Sabe Daninha,
A impressão que me dá é que só existe um lado certo. Parece que patroinhas sempre cobram injustamente, por pura implicância. Toda profissão tem o seu lado chato: corrigir provas quando tem um dia lindo de sábado te esperando lá fora é de lascar, mas foi a profissão que eu escolhi (ou que me escolheu, sei lá). E por eu ser profissional (das melhores) é que eu levo meu trabalho tão à sério. Eu tenho obrigação de fazer direito e cumprir todos os pontos que me foram impostos por força da profissão. Se eu pisar na bola, eu quero que meu chefe me chame a atenção. E olha que muitas vezes eu vou além daquilo que me cabe. Já lavei chão de escola, varri sala, fiz curativo dedo machucado, dei colo quando algum dos meus meninos precisa.Nunca me senti diminuída pro fazes parte de um grupo profissional tão pouco valorizado. Pra falar a verdade eu me sinto o máximo por isso, por ser capaz de ser muito boa no que eu faço e ainda ter tempo de olhar para meus alunos com atenção e afeição, varrer o chão da sala quando fazer recorte em papel, cuidar de um machucado físico ou emocional. O grande problema está na aceitação. Muitas vezes o preconceito começa dentro de cada um. Trabalho difícil, dias cansativos todos tem, sejam empreguetes, professoguetes, produtoguetes... Falei de mais

Wladia Góes disse...

Sensacional!!!
Juro que vi você numa mesa dando seu texto para as empreguetes e elas de boca aberta, meio chocadas, tipo oi???