sexta-feira, outubro 10, 2008

Dona Nilda Spencer


Lábios que Beijei
(roubada do arquivo de A Tarde)

Eu nunca consegui chamá-la pelo prenome. Para mim, desde o primeiro dia, e até hoje, não o último, mas sim o próximo ato, ela era Dona Nilda. Ela entrou na minha vida com o vigor que os 75 anos não lhe haviam tirado. A voz era segura, sem as variações trêmulas típicas da sua idade cronológica.

O dia era comum; a pauta, idem. Eu era jovem demais para estar ali. Aos 22 anos, todos os dias são verão, e merecem ser vividos na praia. Mas eu ainda acreditava — e talvez isso separe as crianças dos adultos —, e levava muito a sério aquela carreira recém-iniciada.

O teatro era fresquinho, escuro, com um confortante cheirinho de bolor. Acho que só eu associo à proteção o cheiro do bolor dos carpetes de um teatro não muito novo. A missão era simples: um trecho da peça, os atores convidando os telespectadores para o teatro, e fim.

Enquanto conversava, as mãos maquiavam o rosto para criar as nuances do personagem. Eu a vi desaparecer camada por camada, enquanto nascia uma mulher de olhar duro, roupas austeras, com um ar de crueldade. Câmera armada, sentei quietinha, e tive, naqueles dez minutos, o privilégio que pouquíssimos tiveram: Dona Nilda e Wilson Mello atuando para uma platéia de duas. Foi com "Lábios que Beijei" que aprendi que chorar no trabalho só fazia de mim uma pessoa melhor.

Nunca, em tempo algum, esqueci de Wilson olhando para um céu que só ele via, cantarolando uma versão ligeiramente esclerosada de Moonriver, enquanto Dona Nilda endurecia o olhar da personagem. Chorei, chorei muito, e não chorei só: Ana, assessora de imprensa do espetáculo, terminou a gravação com o rosto tão molhado quanto o meu.

***

Hoje, a cada vez que escrevi sobre ela — e em algum momento, relembrei o que era escrever à mão com uma fúria que andou perdida —, chorei como em "Lábios que Beijei". Chorei como choro agora. Não, não éramos íntimas, nem próximas, tampouco amigas. Duvido que nesses últimos dez anos ela tenha lembrado de mim, a repórter pirralha, que ainda com o rosto molhado, passou os braços pelo seu ombro e agradeceu por aquela que seria uma das melhores matérias da minha vida.

Não chorei hoje pela sua morte, mesmo porque ando bem convicta de que o espetáculo continua em outros palcos. Choro porque nunca mais ninguém vai ter a oportunidade de levar para vida a lição transformadora que ela me proporcionou.

Nunca mais um repórter guri vai poder aprender que chorar numa matéria nos devolve a humanidade que o jornalismo rouba.

Dona Nilda, merda! Merda pra senhora!

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