O molho branco acabou. Acabaram também os sachets de tempero de feijão, os requeijões há mais tempo. O queijo Polenghi já virou um rastro de memória de um passado distante, mas o mesmo não se dá com os potes de Nutella: ainda existem, mas estão perto de expirar a validade.
Os macarrões cheios de frescura estão nas últimas, o creme de leite já era, e eu ri quando achei a última embalagem de leite condensado tetra pack: minha tentativa de fazer doce de leite cozido nesta embalagem de papelão rendeu bons dias de gargalhadas da mamãe. Por algum motivo misterioso, o alho picado e a cebola triturada ainda estão em perfeito estado de conservação, mas o mesmo não posso falar da goiabada cascão, que veio do Rio pra mim em novembro do ano passado. Hora de rearrumar a geladeira. Há dias me desfiz de um patê de presunto moribundo, que passou meses escondido embaixo do parmesão ralado — que ainda passa bem, a propósito.
Os azeites importados continuam lá, e como os apresuntados, ainda poderão estar comigo em 2015. O catchup não vai ficar por tanto mais tempo, mas acho que os molhos de tomate ainda hospedo por mais uns seis meses. Cada louco tem sua mania, e na minha casa pode faltar fósforo, mas nunca tem menos de 6 embalagens de molho. Ela sabia, e sempre fazia uma festa quando me avisava que novo carregamento estava a caminho.
Este poderia ser um texto sobre a desordem da minha vida, sobre a minha geladeira caótica, e tudo seria pertinente. Mas não é esta a natureza desse escrever de hoje. É uma constatação, mais uma, de que a cada dia a minha mãe me deixa mais um pouquinho. De que a cada dia ela ocupa um pedacinho a menos do meu cotidiano.
Todo mês a mamãe ia ao um mercadão atacadista, e fazia uma caixinha pra mim, outra pra minha irmã, cheias de coisinhas supérfluas. Queijos, Nutellas, azeites, iogurtes, um monte de frescurinhas que compunham um ritual de descobrimento das compras: eu ligava pra ela e ia destrinchando o conteúdo, dando gritinhos, ameaçando não dividir com ninguém, pensando na receita que ia fazer. Desde que ela adoeceu, mal fomos ao mercado para o básico, que dirá para as bobaginhas.
Cada produto que acaba, cada vencimento que se aproxima, é mais uma pequena morte, mais um mini choque da perda, por mais que eu ache que a transição está sendo tranquila. Não está.
Me salvam os azeites, companheiros que vão me arrancar sorrisos pelos próximos 3 anos. Me salvam as cortinas, que ganhei de presente na última vez em que ela foi na minha casa, já doente, já com dor, já fazendo um esforço enorme para sair da cama. Mais do que isso: me salva a educação que ela deixou, as ferramentas que recebi para viver bem até sem ela, porque, óbvio, não somos eternos. Me salva saber que mamãe — e papai, course — me ensinou o caminho para poder eu mesma comprar meus queijos.
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Faço um esforço hercúleo para viver bem a cada dia, mas o luto faz parte, e isso eu tenho que introjectar. Muito tenho brigado comigo, muito me saboto, muito acho que não mereço as coisas e pessoas boas que tenho na vida. Mereço cada um dos meus amigos, mereço cada gentileza, sou uma pessoa legal. Tenho direito a ficar triste, sim, tenho direito de chorar quando preciso, tenho dever de viver cada etapa. Ao invés de vestir uma armadura, e saltitar que nem um elfo feliz, vou me dar ao luxo da introspeção, do retiro, do mimimi.
E só a decisão de tentar já é uma vitória.