domingo, março 09, 2003

Engraçado como eu tnha esquecido da sensação boa que é deixar a maré da criação me carregar.

Estou trabalhando num conto, coisa que não fazia há anos. Dormi demais, mais uma vez, e acabei não tendo ânimo para sair. Apertei o play do CD player. As músicas são as mesmas por uma, duas, três, quatro horas seguidas. Por vezes levanto a cabeça do teclado, volto um pouquinho para esse mundo, cantarolo um pedacinho da música, enquanto vasculho na memória um sinônimo mais palatável para a palavra púlpito. Não acho nada que caiba na minha idéia. Deixo púlpito mesmo, com a anotação de procurar algo mais agradável e visualmente mais leve.

Mais uma vez, os personagens não têm nome. Ele e ela. A mãe dele. A mãe dela. As tias, os fornecedores e os personagens secundários têm nomes. Li um trechinho pra Algas. Ela riu bastante. Mas irmã é sempre suspeita. É a primeira vez que consigo escrever com diálogos. Sempre fiz contos sem uma linha falada por ninguém. Só sentimento e silêncio. Acho que é essa nova fase: cansei de ficar calada, cansei de assimilar as porradas. Meus personagens todos são parte de mim. Pequenas amostras de alter ego.

Eles tomaram um rumo inesperado. Vivem sozinhos, eu só escrevo o que eles me mostram, e não sei realmente como vai acabar. Outra novidade: eu sempre soube como terminavam as minhas histórias. Podia não saber como começar, mas as frases finais já estavam prontas. Dessa vez, eu não tenho idéia se a história termina na lua de mel, ou se eles terão filhos. Pode ser que ele se injurie e resolva não casar. Acho difícil. Ele sempre quis, ela é que relutava. E ele iria desistir só porque o local do casamento está todo decorado de balões coloridos?

Hummm... Balloons... "Hey, Georgie, do you wanna a balloon?" Parou, Daniela, parou por aí!

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Há anos, acho que em 92, comecei a escrever um longa. Do longa, mudei de idéia para um livro. Mas sempre foi uma narrativa muito mais imagética, muito mais voltada para planos, sequências e movimentos de câmeras do que para a literatura propriamente dita.

Era a história de um palhaço, Arnaldo, que era triste, triste de dar dó. Avancei por dentro da vida do Arnaldo, louro, olhos verdes, anjinho de um outro conto. Num determinado ponto, estanquei o fluxo contínuo de pensamentos, e poucas vezes nos últimos anos eu retomei o brainstorm.

Há coisinha de dois meses, menos um pouco, um amigo soube da história do palhaço, e me cobrou o desenvolvimento dela. Eu tinha parado poruqe achei muitas similaridades com a minha vida. Escritora autoreferencial, tudo bem. Mas autobiográfica? Arnaldo já tinha um final definido: ia se matar do Viaduto do Chá, caindo no Vale do Anhangabaú em obras (pessoas de São Paulo, em 92 o Anhangabaú estava em obras?). Deixaria duas mulheres.

O que eu não contava era que o meu sentimento em relação ao palhaço triste tivesse mudado tanto ao longo dos anos. Achei um brainstorm de 98, e segui a linha de raciocínio do que o havia levado a cometer os atos que cometeu. Descobri que eu só poderia odiá-lo. E foi certeiro: desenvolvi um nojo latente pelo Arnaldo. Já em 98 eu havia descoberto isso, e reli nas anotações que eu não queria odiar, mas que era inevitável. Perdi o carinho que sentia pelo sofrimento dele, curti descrever a sua morte. Não consegui justificar que ele tivesse trocado a mulher que o amava por outra, que valia pouco ou nada, e que cuspiu no seu cadáver quando chegou no local do acidente.

Ancorando a alma, flanando pelo Anhagabaú, último dia em São Paulo, véspera de embarcar para o Rio, parei e fiquei olhando, absorta numa história de amor que havia começado anos antes e que tinha acabado de terminar. Um palhaço morto no chão. Arnaldo. Quase vi um nariz vermelho rolando até os meus pés. Não, não cuspi no seu corpo. Não foi um ajuste de contas. Virei as costas, firme, olhos agora secos. Entrei na estação do metrõ, sumi na multidão. Rest in Peace, blonde and sweet guy.

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Ei... Alguém conhece Spooky Madness? Não? Sério? Big Bad Voodoo Daddy? Oh, yeah, baby, procure, então, porque é uma das grandes músicas que já tive a sorte de baixar... E é o que estou ouvindo agora... Spooky Madness, do Big Bad Voodoo Daddy, virando Return to me, do belíssimo e um dos meus primeiros amores, Dean Martin.

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