On the road
Consegui terminar a crítica de Carandiru, e minha alma parecia esgotada.
Apaguei as luzes, deixei só o meu abajur aceso. A águia aninhada nos meus braços, um livro ligeiramente chato. Eu tinha tudo para estar apagada agora. E por que será que não consigo fechar os olhos? Será que o livro tornou-se interessante depois da página 40 (estou na 200 e poucos)?
Apaguei o abajur um pouco, escuro total. Lembrei de um motorista que tive, o que mais rodou comigo. Viajando a noite, eventualmente ele apagava os faróis. Era para enxergar melhor, já que não tinho o próprio clarão para ofuscar as lanternas de carros que eventualmente viessem no sentido contrário.
A pouca manha que tenho de estrada aprendi com ele. Era uma média de dois mil quilômetros por semana. Acabamos nos tornando confidentes. Ele sabia do meu problema maior, eu sabia dos dele. Descarreguei o meu ódio em estradas vazias, com temperaturas que chegavam facilmente aos 45 graus. Passamos por maus bocados juntos, mas nos divertimos à grande naquele ano. Tivemos um toca-fitas no carro. Foi usado uma única vez. Nunca conseguimos chegar num acordo em relação às minhas fitas de rock and roll e as dele do Milionário e José Rico. O silêncio da estrada tornou-se mais camarada.
Briguei pela promoção dele, ensinei o pouco que sabia de produção, de enquadramento, de direção, para ele. Se a minha direção do VT do PG-SP foi tão elogiada, devo a assistência de direção à ele. Consegui, enfim, que ele fosse ao cargo de supervisor de mercado, a maior ascensão que um funcionário lotado naquela base teve.
Sempre que me referia ao Ricardo, salientava que o mais impressionante de tudo é que ele tinha apenas 21 anos, e ninguém costuma contratar um motorista tão novo.
Hoje, sentada na frente do computador, quase cinco da manhã, olho pra trás e vejo que DUPLA espantosa formávamos. Ele, 21 anos, o melhor motorista que conheci. Mas e eu, que aos 23 era responsável pela implantação da comunicação na nova base? Que espécie de loucos contrataram esses dois guris para atividades de risco? Aqueles dois COMPETENTES guris, que trabalharam duas vezes mais que qualquer funcionário da empresa ali.
Que eu saiba, nunca se arrependeram. Pelo contrário: recebi o convite mais lisonjeiro que podia ter recebido, vindo do todo-poderoso da empresa.
— Quer ser sócia do meu filho na regional Bauru?
Neguei. Nunca me arrependi. Competente, sim, mas fragilizada demais para arriscar o pescoço num empreendimento que mostrou-se um naufrágio um, dois meses depois. Mas o convite aconteceu, e não por causa dos meus belos e expressivos e míopes olhos castanhos. Fui convidada porque sou boa. Fui convidada porque sou competente.
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Por que a historinha gratuita? Para eu nunca esquecer disso. Nunca mais. Para eu me apoiar quando achar que o resto está afundando. E porque apagar as luzes novamente serviu para fazer enxergar melhor.
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God, you gave me strenght. Thanx.
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