domingo, outubro 26, 2003

Dois casos de repostagem

Eu realmente gosto muito destes textos. E damnit!, eles são meus mesmo!


Me encanta a doçura, a energia, a curiosidade louca de uma criança. Me apaixona ver os olhos arregalarem diante do novo — e o mundo é sempre uma caixinha de surpresas para elas. Adoro ver a sadia destruição que um bebê de pouco mais de 3 anos pode causar. Destrói a maquiagem da mãe, a roupinha bem ajeitada que a vovó vestiu nele, o brinquedinho da aniverariante, a cobertura do bolo. E quando não resta mais nada para levar ao chão, nos lança aquele sorriso inocente, tenro, e sai correndo, levando consigo mais uns corações destroçados, derretidos.

Pequenas mãozinhas agarram a minha saia comprida, e por um momento sirvo de guard-rail para aquelas duas almas inquietas. Aproveita, Guilherme, enquanto não reclamam porque você puxou as saias de alguém para cima. Essa permissividade não vai durar para sempre...

— Quer um brigadeiro?
— Não, quero bolo.


E o bolo lá, do alto da sua majestade quase glacial, de neve açucarada, encarando o menino, que tão educadamente controla as mãos para que não ajam sem controle. Três anos, e já sabe que se correr o dedo por aquela nuvem branquinha algo de ruim vai acontecer.

Sentei num cantinho, e fiquei saboreando aquele desfile de roupinhas rosa, copos de refrigerantes tombados, chocolates abandonados, canções infantis, gorgolejos de vozes pouco treinadas e sem vergonha de exibir o seu idioma primeiro. Estar com crianças é mergulhar num mundo onde nada que do conhecemos prevalece. Nem adianta insistir: entre um "bigadeiro" e um chocolate que virou "cocate", eles seguem, nos atropelando com os "ômbirus", fazendo girar as hélices do "licópto", tomando "fizerantch" e conversando sobriamente com o Papai do Céu.

E lá vai o nosso mundo, pernas para o ar, como a cadeira que a Bibia acabou de virar.

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Não esqueçam de prestar atenção no peixe indo embora...

Swimming in a fishbowl



Adeus. Pra sempre.

Como um dia quis que o nosso "pra sempre" fosse pra sempre, quero que esse adeus também dure. Pra sempre. Não precisa me levar até a porta. Já me expulsou tantas vezes da sua vida que conheço bem o caminho de saída da sua alma. Estou levando as malas. As minhas. Só.

Não quero nada que tenha (des)construído ao seu lado. Os "nossos" planos já não me servem mais. Ser feliz com você nunca foi viável. Será que fomos? Será que não tomamos a pílula azul, e temporariamente nos deixamos voltar para a Matrix?

Vou derrubar as paredes que erguemos juntos para guardar nossos sonhos surrados, já meio gastos, malas rodadas. Vou arrancar o piso aveludado que escondia a podridão do assoalho velho, de madeira enegrecida pelo tempo e pelos pés que nos pisaram o coração. Vou arrancar os papéis de parede e deixar ver as ranhuras de vasos atirados contra nossas cabeças, furos de pregos que sustentaram quadros de outrora. Vou exibir as chagas que as unhas de outra deixaram no concreto da sua alma, vou deixar que o mundo veja as marcas das minhas mãos na tinta descascada, mãos que tentavam se agarrar a qualquer fragmento, para que eu não me afogasse nas águas do meu próprio desespero.

Todos vão ver a marca da bala que me trespassou a alma, vinda de trás, e os fragmentos de memória olfativa, táctil e auditiva que saíram pelo buraco feito pelo tiro. Os novos habitantes das nossas almas vão encontrar o sulco do meu corpo encolhido de dor no chão duro. Dos seus pés ruminantes, cavando um pequeno buraco para jogar o que restasse de mim. Os nossos novos hóspedes verão pequenos furos no colchão, no parapeito da janela, na mesa da cozinha, nas suas mãos, nas minhas.

Lágrimas. Todas elas que derramei quando ainda acreditava. Vou regar todos os nossos vasos de planta com as minhas lágrimas ácidas, e ver morrendo uma por uma. Flor por flor, que tanto trabalho tivemos para convencer que o mundo aqui fora não é cruel. Uma gargalhada amarga. Mentimos, florezinhas! O mundo pode não ser cruel, mas as pessoas são. Ele é. Eu sou.

Vou derrubar a lápide de um amor natimorto, que embalamos nos braços, criança no sono, na esperança de que aquele arremedo de cuidado o ressucitasse. Vou arrancar as cortinas primaveris e deixar bem à mostra as marcas que fiz com a minha testa no vidro da janela, esperando que o inverno se fosse, que você viesse, que parasse de doer. Esperando que tudo fosse de verdade. E pra sempre. Como foi o amor. Como será esse adeus.


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