terça-feira, dezembro 30, 2003

Diatribe lacrimosa

Desta janela à minha frente vejo um bambuzal, uma emissora de televisão, alguns pedaços mortos de folha de coqueiro, e uma única flor amarela entra em quadro, balançando como se fosse um relógio para hipnose: agora você chora, Daniela, agora você chora.

Deve ser o único lugar quase a céu aberto onde a temperatura é minimamente civilizada. O dia inteiro entra um cheiro de mato perfumado junto com o vento, o que faz com que eu tenha vontade de parar tudo, fechar os olhos e me deixar abraçar por essa onda verde que chega e limpa o já tão carregado escritório.

Nas paredes vão e voltam os restos de risadas que foram dadas aqui num passado nem tão passado assim. Como o pretérito de uma coisa boa pode ser perfeito, quando acaba de verdade? Deveria ser pretérito imperfeito, uma ação que teve desdobramentos,que não aonteceu uma só vez. Como, aliás, explicar o pretérito perfeito. "É o que foi", e temos dois tempos verbais distintos para designar a mesma coisa, na mesma frase?

Aqui dentro o mundo parece correr num ritmo diferente, o organismo funciona de maneira diversa. Quer entender? Sexta-feira tem cara de sexta-feira, não é? Segunda tem aquele rançozinho de início de semana, e o que explica o cheirinho de sábado de manhã, que de olho fechado e ainda grogue de sono, você sabe certinho que dia é só pela luz?

Em produção não existe dia da semana, existe dia de produção. Quer entender de novo? Terminamos uma maratona de 3 dias gravando, pulando de cidade para cidade, dormindo nada, descansando porra nenhuma. Dia lindo, moldura de foto de família — feliz —, e lá vou eu, me despedindo da entrevistada:

— Obrigada por tudo, desculpa por a gente ocupar sua sexta feira, mas agora você vai poder aproveitar o finalzinho do dia...

Ela sorriu, muito gentilíssima: era quarta-feira.

(Pausa: como um ser humano pendurado por duas lágrimas num abismo, se dá ao luxo de ouvir Travis? Respostas para a Redação, se a Redatora não cortar os pulos antes.)

E aqui não tem dia: é eternamente uma oitava-feira, dia que ainda não sabemos feriado ou útil, ou mágico, ou de fadas, ou whatever. E hoje o dia é uma típica oitava-feira: o sol está morninho, o filho do Mein Direktor está zanzando pela casa com o presente de Natal, estou perigosamente caminhando pela Alameda das Lembranças, e tenho medo que um cachorro da raça Más Recordações venha morder meus calcanhares durante esse passeio.

E aquela flor vagabunda, hibísco amarelo, continua a balançar na minha frente: agora você chora, Daniela, agora você chora.

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