Eram mais de duas da manhã. Muito mais. Era pra lá de três, quase quatro. A menina subiu uma rampa e ganhou os céus. Deitou no chão da garagem, perdeu a cabeça nas estrelas.
Crianças pertinentes, adultos nem tanto, e a noite começara bem. Noite que apontara com o dia claro, quase prevendo que a lua faria papel igual ao do sol. Menina boba, apaixonada por um, beijando o outro, sonhando com os três. Ou quatro. Eram pra lá de três. Quase quatro.
Perdeu a cabeça entre as estrelas, alçou vôo, deixou o corpo quietinho, deitado no concreto, olhando uma antena de TV hipnótica. E foi, movida pela felicidade descabida, girando nos braços do vento, fazendo pacto de amor eterno com cada supernova que cruzou o caminho.
Amores efêmeros, meus e os das supernovas, que ao menor sinal de instabilidade, explodem. Como eu, que caminho por cima de uma lâmina fina, rasgando os pés, vendo o sangue tingir o aço polido, vermelho sobre prata. Eu, que arrisco, que jogo, menina que deita no chão e deixa que a alma faça enfim o que o corpo sonhou o dia inteiro.
E entre as lembranças de um beijo, ou dois — pra lá de três, quase quatro — e de vários abraços — desses ela perdeu a conta! — o corpo ficou lá, estendido como roupa quarando. Quarando na lua, lua de São Jorge. Eu estou vestida com as roupas e as armas de Jorge, para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem, tenham mãos e não me toquem, tenham olhos e não me vejam, e que nem em pensamento eles possam me fazer mal.
Engraçado como quarar roupa é ao sol, e que fiquemos moreninhos fazendo a mesma coisa. Hora de voltar, mas estava tão fresquinho aqui em cima... Branqueando a alma embaixo da lua que não vejo, matando as saudades de quem está tão perto e tão longe, saboreando o beijo que nunca vem, o abraço que veio e foi, o afago que chegou com um ano de delay.
É tarde. Tarde para que possamos ser felizes juntos. Cada um na sua, felizes pela metade, two losts souls swimming in a fishbowl, running over the same old ground. É tarde para que possamos realizar aquilo a que fomos destinados. É tarde para que eu seja mãe dos seus filhos, é tarde para que ele durma abraçado comigo.
São mais de quatro. Quase cinco. Vou sozinha espanar a poeira do corpo, sacudir as estrelinhas de chão da saia preta cor-de-universo. Vou trazer o Cosmo de volta para as minhas mãos, ao invés de deixá-lo refletido nos meus olhos apenas. É tarde, e ainda tenho uma boa briga pela frente. E tenho meus quatro, quase cinco, para me embalar no pouco sono que está-me reservado para esta noitedia que vem daqui a pouco.
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Porque hoje é sábado, ele terá seus filhos, eu terei os meus, e talvez ele até esteja presente no bar mitzvah do meu primeiro guri. Ele será sempre meu, e eu serei sempre sua. Sempre será ele o meu companheiro de caminhada, mão amiga que vai segurar a minha esfolada depois da queda, ele que vai secar as lagriminhas que farão trilha limpa na pele suja de criança. No pescoço dele vou esconder o meu rosto e soluçar dores de amores outros. E nossos.
Condeno a vida a correr em torno de nós dois, pelo crime de ter-nos jogado para lados opostos durante todo o tempo.
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