sexta-feira, fevereiro 28, 2003

"..prisioneiros de uma diáspora desgastante e por vezes auto-destrutiva"

Roubado de um artigo estupendo de Leila Míccolis, numa resenha de Terra Estrangeira (1995)

"...e todos sentem a água como condutor e/ou mortalha de anseios, vivenciando-a como símbolo das próprias emoções — frágeis garrafas de vidro com pedido de S.O.S. vagando na superfície de profundezas abissais. É o elemento água apresentado como metáfora poética do útero materno com seus líquidos amióticos e mares de lembranças, cuja perda se extravasa no primeiro choro. Oceanicamente salgado. Diz Madruga, em República dos Sonhos: "O mar é minha memória. Sempre lancei no Atlântico as minhas lembranças. Mesmo aquelas de que hoje me envergonho. Onde estaríamos nós, se o homem europeu não tivesse ultrapassado Gibraltar, enfrentando e vencido o Atlântico? Unicamente o oceano é capaz de nos roubar e igualmente nos devolver a visão descomunal da realidade".

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Lua minguando, um sorriso pendurado no céu. Alguém ri da minha fortuna, alguém compartilha das minhas alegrias. Dentes enfileirados como pérolas num cordão, Gato-que-Ri comigo, não de mim. Risada que me conforta, porque na minguante durmo, durmo como que embalada pelo ronronar desse Gato de Alice. Sono uterino, morno, pontilhado de sonhos estranhos, realização de desejos inconscientes — ou nem tanto.

Lua que rege meu humor, minha cabeça, chave da minha tranquilidade. Resposta para os meus pedidos de serenidade. Lua que me tira energia, mas devolve em estrelas. Várias. Cacos de sonhos espalhados pelo negrume do céu, pequenos olhinhos que piscam e piscam e piscam pra mim, cúmplices de uma dor muda que não se identifica.

Jogo sujo. O escuro potencializa os sentimentos. Do ocaso à aurora, doze horas onde a única certeza é a incerteza. Incertezas que vêm com a primeira estrela no céu. Estrela-criança, dona de uma curiosidade ímpar, estrela que nunca se cansa de ver o sol se pondo.

Estrela que convida a um passeio pelas outras, mais e menos brilhantes. Estrelinha que nos intima a fazer um pedido diário: "Que seja doce, que seja doce, que seja doce!", "Que a noite me traga o amor que eu preciso, a paz que eu não quero seguir, a felicidade na medida exata."
Fazer o pedido de olhos fechados. E acreditar, e acreditar, mesmo sem ver a prova. Ou mesmo que a prova demore um pouquinho.

E finalmente poder sorrir para o Sorriso-do-Gato-que-Ri. Dançar sob as estrelas gargalhando na cara da dor, com os pés descalços na areia úmida, cheiro de maresia que envolve num abraço apertado. E esvoaçar os cabelos no vento do mar, tentar abraçar os pontinhos que brilham no céu, mantendo os braços abertos até que consiga agarrar uma ou duas. Ou até que canse de girar loucamente sobre o próprio eixo, peão de mim mesma, e deixe o corpo encontrar o aconchego da areia, ainda rindo. Bêbada-sóbria, palhaça sem lona, circo a céu aberto, em paz.

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Pelas barbas do profeta!!!

Estou escrevendo sobre Terra Estrangeira, procurando as fotos do filme, e acabou de virar "Vapor Barato" (track do filme) na rádio online!

Valei-me, São Pancrácio!

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Ainda Terra Estrangeira

"Um instante filosófico, repleto de poesia, paira na cena do velho navio encalhado no mar, impossibilitado de seguir ou retroceder, tal como os dois personagens que permaneceram estáticos dentro do contexto da marginalidade, numa vida reticente, envelhecida, como uma matéria bruta, ou como o velho navio enferrujado que não alcançou o seu destino. No entanto, o amor que surge entre ambos recompõe a possibilidade do sonho, é o condutor da libertação. No momento em que se amam, parecem perder a condição de estrangeiros, de estranhos, é o resgate de identidade, da própria vida (digna)."

Arthur Prado Netto


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