quinta-feira, maio 01, 2003

Sou uma menina muito organizadinha. Numa gavetinha guardo papéis de carta que colecionava, memorabilia de matérias gravadas no passado, um ursinho panda delã, ingressos de shows aos quais eu não fui. Coisas de menina.

Na outra gavetinha guardo as roupinhas de dormir, roupinhas de baixo, roupinhas com estampa de bichinho, clacinhas com estrelinhas e luas. Coisas de menina.

A terceira gaveta tem camisetas de cores extravagantes, com aplicações em fitinhas, cristaizinhos, bordadinhos. Camisetas indianas, africanas, americanas, brasileirissimas. Coisas de menina, mesmo.

Na quarta gaveta tenho shorts estampados, saias curtinhas de todos os tecidos. Vários modelos, algumas em rosinha, outras com números, qual uniforme da cheerleader que nunca fui. Bem coisa de menina.

Na quinta gaveta eu guardo as mágoas. Todas elas, e quase nunca abro. Parece um portal para o inferno; de lá erguem-se vozes que ecoam no meu ouvido, que me acusam, me adoçam, me espacam, me laceram, me sangram. A quinta gaveta tem muita dor, e hoje eu a abri, procurando por uma faixinha de cabelo, por uma presilha de ursinho... Ou pela navalha afiada que foi o que encontrei.

De todos os artigos que são conhecidos, as mágoas são as que apodrecem mais rápido, e as que mais levam tempo para sumir de vez. A gente acha que já está livre, e um dia abre a gaveta proibida. De lá emana o cheiro dos cadáveres insepultos na memória, no passado, na vida. Todos estão lá, e você até consegue ver um ou dois acenando alegremente do meio dos guardados.

Hoje doeu. E eu fiz questão de que doesse. Não futuquei o fundo da gaveta, tem mortos que ainda não consigo ver. Tudo para eu continuar sempre enxergando que o processo de reconstrução dói, que eu continuo uma idiota, construíndo castelos de nuves. Nuvens cinzas, que se desfazem numa tempestade violenta, me lançando ao chão junto com a água, com a poeira, com os destroços do meu sonho.

Deixei doer de propósito. Condicionamento de minhocas: tomar choque até achar o caminho certo. Ou, para usar um exemplo mais pop, cravar a unha no intervalo entre pele e unha do polegar, como o Paulo Coelho em Diário de um Mago. Ah, não gostou do Paulo Coelho? Você, evoluído fã do pop-mais-que-pobre Nick Hornby?

Pois sim, que doa. Que eu nunca mais me esqueça de abrir periodicamente a minha quinta gaveta. Evita que eu volte a acreditar. Me deixa permanentemente vacinada contra boas intenções alheias. Te incomoda essa linha de pensamento preventivo? Fazer o quê? Coisas de meninas, né?

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Vou almoçar. Sim, mais de oito da noite, sim.

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