sábado, junho 07, 2003

Numa outra dimensão

Viagem curta, dia ensolarado. Passa a Desavisada para me pegar, abastecemos o carro, e a notícia:

— Minha sogra vai pegar uma carona até lá! E você vai sentada na frente para co-pilotar!
— Nem que a vaca tussa em Si Bemol eu vou sentada na frente! Vou é pular pro banco de trás!


Depois da Desavisada enfiar o carro numa contramão, de não saber o número do apartamento da mãe do dito cujo, ela ainda me olhou com ar de súplica e resmungou:

— Quem vai acender os meus cigarros?
— Eu acendo aqui no banco de trás, fica fria.


E lá vem uma velhinha cheia de bolsas, sacolinhas, caminhando em direção do carro.

— É ela?
— Não é, não...
— Então estão te mandando a velhinha errada.


Não era a sogra, mesmo. Era a empregada da sogra, chegando com os pertences antes da passageira. Ela já ia descer.

Lá pelas tantas, vem uma senhora meio cambaia, com o sorriso rasgado até as orelhas. E era ela que a Desavisada queria que lagartixasse no banco traseiro do carro...

Ela chega mais perto, e Oh, não!, eu sei exatamente de onde a conheço! Ano passado dois amigos queridos, parceiros de trabalho, estavam dirigindo um filme para a campanha do dia das Mães e precisavam de uma velhinha com ar meio triste, que mudasse a expressão para um radiante sorriso no final. E não é que descolaram a Sogra da Desavisada?

Bem experiente, mas não avisaram que ela só sabia interpretar a segunda parte do VT, a da vovozinha feliz depois do presente. Duas horas depois — e 17 litros de suor derramado —, a paciência já estava no fim, e a única que ainda conseguia sorrir — na hora errada! — era a sogra.

— Dona Sogra, eu preciso que a senhora faça uma cara bem tristinha no início...
— Meu filho, a única coisa que eu sei é sorrrrrrriiiiiiirrrrrr! —
e rasga os lábios até a orelha.

Diz a lenda que ela foi substituída logo depois desse último esgar de alegria.

***

No carro

Sentei no banco atrás dela, e pra Desavisada não resmungar, levei os celulares e os cigarros comigo. Tocou, atendo. Quer fumar, acendo.

A sogra:

— Eu demorei um pouco porque fui tentar fazer umas gotas de xixi... Estou com incontinência urinária, quero aguentar ir até lá...

Por via das dúvidas, fui de pés bem encolhidos até aquela bela cidade baiana.

********

Não sei quem pediu comida chinesa. Toca a campainha, não sei quem abre. Camisa do Brasil, cabelos meio revoltos, castanhos claros. Bonito esse entregador, né? Parece com...

— Oi, Dani...
— Bonitinho e Nada Ordinário, você???
— Eu queria ficar aqui... Peguei o primeiro emprego.


[corta para]

Estou encostada nos seus joelhos, e acima de mim, só o céu, os seus olhos e o peso de um amor não-confessado. Eu neguei, ele até tentou me convencer do contrário. Tempo curto. Mais um único dia, e a história que eu queria contar não seria tão triste.

Seu dedo percorre a curva dos meus lábios, e eu respiro fundo, coração martelando na garganta. É amor, amor na mais pura apresentação, versão redux.

Sim, foi um sonho. Mas estou sentindo até agora o traçado do indicador na minha boca...

Nenhum comentário: