quinta-feira, abril 22, 2004

Um rolo de filme batido, três remédios para manter a sanidade, cigarro e isqueiro, celular, óculos escuros que não saem mais hoje, o rosto cor-de-rosa-saúde, uma hora até a hora de sair, chuva torrencial e ouvindo Round Here só no piano.

Tomara que o remédio para a sanidade faça efeito logo.

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Ele tinha os cabelos mais negros que eu já vi. Barba cerrada, fazer de manhã garantia que de noite ele estaria com uma sombra escura no rosto. Mouro. Acho que tudo começou de verdade com a tatuagem dele. Não na praia, mas no hotel, quando pedi pra ver. Okê Arô, arco e flecha de Oxóssi, quem conhece não pergunta, quem não conhece acha só bonitinho.

Sempre foi o "forbidden guy" pra mim. Um abismo nos separava, e se você acha que estou falando só da quilometragem se enganou. Engraçado que a vida não tenha nos jogado um contra o outro nos cinco anos em que ele esteve aqui. Precisou ir e voltar, e assim se escreveu uma história diferente.

Mas o fascínio que sentíamos um pelo outro veio mesmo no dia da praia. Protetor solar, olhos nos olhos, "passa na minha tatuagem?", e eu passei. Os dedos meio tremidos tocaram a parte macia do braço dele. As pontas passaram vezes sem conta por cima do arco do Sultão. Eu não vi. Em momento algum desviei os olhos dos dele, que não se fez de rogado, e apagou todo o cenário — e a figuração — para nos jogar num fundo infinito.

Éramos só nós, ali. Sua assistente foi pro espaço, seu dupla também, bem como o MEU dupla, os técnicos. Por mais segundos do que a boa educação permite, pertencemos somente a nós.

Mas estava acabando. O clima pesou com a equipe, e a minha posição me obrigava a criar uma carapaça (quitinosa, e quitina é polissacarídeo - piadinha interna) que nunca me pertenceu. Das maneiras mais estapafúrdias conseguimos raramente estar sozinhos outras vezes. Sair antes da equipe, brainstorming dentro do carro, músicas antigas partilhadas, CDs randômicos que ambos adoravam. E nunca, nunca nos tocamos mais do que com as pontas dos dedos ou as palmas das mãos.

Ele foi embora antes, deixando um bando de esnobes para fazeraquilo que ele fazia magistralmente e com uma simplicidade, uma doçura, que me fariam voltar a trabalhar com ele. Se nos despedimos, apaguei da lembrança. Algumas coisas doem. Sei que um dia ele não estava lá, e eu sabia que não estaria.

Melhor que nós tenhamos nos separado. Foi forte, intenso (não a experiência mais intensa da minha vida, que ficou anos-luz à frente), e somos de dois mundos opostos, duas vidas antagônicas; nos separavam não só os três estados, mas oito letras determinantes. Oito letras e três cores: vermelha, preta e branca.

Força, corinthiana!

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Por que lembrei? Sei lá... talvez porque há quase um ano as minhas aspirações eram outras, meus sonhos ainda eram em technicolor, eu ainda acreditava. Passou, mas quando a gente está só é maravilhoso ter uma lembrança que não machuque mais, um lugar onde a cabeça possa se refugiar, se esconder da chuva que não cessa.

Foi amor de Baudellaire.

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Pré-estréia de Kill Bill agora, desculpaê!

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