quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Eu nunca aprendi a lição do arrependimento.

Na minha cartilha eu tenho a lição do perdão — estou quase dando aulas sobre... —, da abstração, da tolerância, e parado desde 99, a do amor incondicional. Mas alguma coisa se perdeu, e perdi as aulas que ensinavam a me arrepender.

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A porrada veio em etapas, como tudo o que dói na minha vida. Escorregão e queda, escorregão e queda, seja em no plano físico, seja no plano emocional. Você já levou um tiro?

Assim que a nova saraivada de balas trespassou a minha pele, eu desliguei o monitor e fiquei só ouvidos e coração. Sobrevivência, acredite: eu precisava entender. Eu já não estava mais na sala de produção, cercada de pessoas que nem sempre me diziam algo. Tampouco sabia onde estava: só sabia que tinha muita água, e que não era hoje.

A ligação se desfez, e eu, qual autômata, levantei do chão, suspirei e caminhei porta afora. Alguma coisa quente nas costas: sangue, sangue da bala. Mas o quente não é desagrdável. Não havia dor ainda. Desliguei todos os canansi de comunicação com o exterior: surda e cega, só havia o coração, que tentava se ajustar ao novo ritmo imposto pelo ferimento.

A bala entrou bem do lado de um tiro antigo: reabriu os pontos que não haviam fechado direito, um machucado confundiu-se com o outro, e num instante de delírio eu não sabia se vivia o passado ou o presente.

Como a vida continua, continuei a levar o dia. Fiquei escondida atrás de um computador hostil, mas a dor me achou. E veio na velocidade do tiro: entrou rasgando, desta vez pelo estômago. Arquejei, encolhi o corpo, fechei os olhos. Eu vou enlouquecer, minha vida precisa sair do loop! Eu vou perder a razão, preciso sair dessa história de terror!

Perto de perder a razão, reuni o que me restava de coragem — e era muito pouco —, transmiti o relatório e encerrei o dia. Pendurei uma tabuleta na porta da alma, suspensa pelo nariz.

Fechada para balanço.

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Que curiosidade mórbida te trouxe? Esperou ver os anúncios fúnebres? Esperou um desatino emocionado? Esperou um esbravejar contra os céus? Esperava essa dor tão grande? Sorriu com ela? Conseguiu o que queria?

Estou destruída, mas aproveite: seu prazer não dura pra sempre.

Minha dor tem prazo de validade.

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Eu odeio abandonar a mesa, mas não faço questão de virar sobremesa.

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