quinta-feira, abril 03, 2003

— De onde a gente se conhece?

Não é o meu tipo de homem. Mas eu não tenho um tipo certo, aliás. Retificando: não era o homem pra quem eu olharia duas vezes. Mas a gente se conhecia.

Feio. Muito parecido com um ex-namorado que gravitou à minha órbita another time, another place. Homem bom, honesto, sensível. Como esse aparenta ser. Esse é mais novo: 30, 32 anos. O outro já fez 41. E a gente se conhecia.

— Estou muito nervoso.

Fica tranquilo, meu bem, eu estou te dirigindo, entrega o seu futuro nas minhas mãos, confia na minha sensibilidade. Eu te levo até lá.

E assim foi. Repetições do mesmo texto, a arte imita a vida. Dificilmente a gente acerta na primeira.

— Quer dar uma volta, refrescar a cabeça, e gravar daqui a uns dez minutos?

Ele foi. Eu fiquei. E vieram dois, vieram três, e minha cabeça se desprendeu dele no momento em que cruzou a porta do estúdio. Veio mais um, e volta ele.

— Eu perdi a vaga num filme de um diretor famoso porque não conseguia me expressar.

Vamos com calma, pessoa. O meu tempo é o seu, não tenho pressa, me adapto ao seu ritmo. Não quero que você perca essa vaga comigo por causa de insegurança. Eu tenho paciência, e se não estivesse acostumada com repetições, não estava dirigindo. Nem vivendo.

— Com o público é diferente, não me assusto. As câmeras me intimidam.

A idéia me vem como uma bala. Descalça, para aterrar, fico ao lado da câmera. Entra nos meus olhos, faz o teste olhando direto pra mim. Eu sou seu público, eu te aplaudo, eu peço bis. De mim você não tem medo, né?

Os olhos diziam que não, a voz vacilava. Primeira tentativa, e os olhos escaparam um pouco dos meus. Pára. Volta. Tudo OK. O áudio está bom. Gravando. Dessa vez, capturei sua alma, que espreitava pelos olhos quase negros. Não errou uma vírgula até o meio do caminho. Mas errou. Não deixo que ele se vá: continuo com a alma aparafusada na dele. Terceira tentativa. Começa bem, e fala só pra mim. "Eu queria fazer um elogio", diz o texto, diz o ator, diz o homem.

Não precisa falar: seus olhos já o fizeram por você. Passa o ponto crítico. Engata a segunda, e continua dizendo que está muito feliz por eu ter aparecido na vida dele. Eu, o produto do comercial, éramos a mesma coisa, já. "Continuem a pressão", terminava o texto, e o final chegou sem dor.

— Você conseguiu!

É, meu bem, eu disse que você vencia esse medo comigo. Foi só confiar. Um abraço apertado.

— Obrigado!

Não a mim: a você. Eu sabia o tempo todo que você ia conseguir. Sempre soube. Nunca duvidei da sua força, mesmo quando você mesmo desistiu. O que fiz foi ter calma e doçura para conduzir para fora o que você tinha de melhor. Quando pedi que se afastasse, era um tempo para você mesmo, não pra mim. Sou mulher, a minha memória ancestral me mostra o caminho servil, quase gueixa. Incansável fêmea, que não desiste. Como não desisti de você.

Um último olhar pra trás, um sorriso. Tchau.

A gente ainda não sabe de onde se conhece. E precisa?

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Com um dia desses por semana eu parava o Prozac ontem!

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Bem que podia ser uma história de amor, né? Uma história que podia acabar antes do "tchau". Lá pelo abraço apertado, lá pelo "obrigado". Ou lá pela parte em que eu insisto que não desisti. Mas não foi. A vida imita a arte: a gente nunca consegue de primeira.

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